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O dia em que palavras não bastaram: o que aprendi como voluntária bilíngue

  • clararockenbachdas
  • 8 de set.
  • 3 min de leitura

Atualizado: 19 de set.

O cheiro da terra molhada ainda está na minha memória. O som que mais me marcou? Não foram as sirenes, mas os sussurros. Vozes trêmulas, nomes ditos com pressa, histórias partidas pela água.


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Em maio de 2024, o Rio Grande do Sul, meu estado natal, enfrentou a pior enchente de sua história. Ruas desapareceram, casas foram destruídas, e milhares de famílias ficaram com pouco mais do que documentos encharcados nas mãos. Foi nesse cenário de perda que conheci uma das experiências mais transformadoras da minha vida.



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A Fundação Budista Tzu Chi, de Taiwan, organizou uma missão de ajuda humanitária no Brasil — e, por causa da minha avó, que faz parte do grupo em São Paulo, fui convidada para ser voluntária como intérprete de português e mandarim. Não pensei duas vezes.


Achei que minha função ali fosse, basicamente, traduzir. Mas logo descobri que traduzir, naquela situação, era muito mais do que trocar palavras de um idioma para o outro.


Quando o Google Translate não entende o coração

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Nos primeiros momentos, recorri ao Google Tradutor sempre que sentia insegurança.

Eu queria garantir que tudo fosse dito “certo”. Mas a realidade era confusa, barulhenta e caótica. E as palavras... simplesmente não davam conta.


Lembro de uma menina pequena, com o cabelo ainda úmido, que segurou meu pulso e sussurrou: “Sinto saudades da minha mãe.” 

O tradutor piscou: “I miss my mom.” Mas não era só isso. “Saudade” é mais do que sentir falta. É uma dor que aperta o peito. É amor embrulhado em ausência.


Outros termos também me escapavam. Como explicar para alguém de Taiwan o que significa cafuné? O Google traduziu como “head scratch”. Mas não é só isso. Cafuné é quando uma mãe diz “eu te amo” com os dedos, penteando os cabelos do filho com carinho. É uma memória de afeto que se guarda no corpo.


Foi aí que eu entendi: traduzir não é apenas passar palavras adiante. É criar pontes entre culturas, entre emoções, entre histórias.


A presença como tradução

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Depois disso, passei a escutar mais com o coração do que com o dicionário. Aprendi que, muitas vezes, um gesto é mais claro do que qualquer frase. Um olhar gentil, um abraço espontâneo, um minuto de silêncio respeitoso — tudo isso fala línguas que nenhum aplicativo entende.


Uma voluntária taiwanesa, ao ver a garotinha triste, se ajoelhou e passou a mão devagar em seus cabelos. Como quem diz: “Estou aqui com você.” A menina fechou os olhos e se encostou no braço da mulher. Nenhuma palavra. Mas uma conexão inteira aconteceu ali.


Foi assim que compreendi que, em momentos de crise, as pessoas não estão procurando apenas por ajuda. Elas estão procurando por acolhimento. Por alguém que as veja. Que as ouça. Que esteja ali, presente.


Mais do que intérprete: ponte viva entre culturas

Traduzir, naquele contexto, era quase como respirar entre dois mundos. Ajudar pessoas que falavam línguas diferentes a se entenderem — não só com frases, mas com sentimentos.

E isso me tocou profundamente, porque também cresci entre culturas.


Sou filha de pai brasileiro e mãe americana. Meus avós são chineses. Estudo em um colégio alemão. Sempre me senti um pouco “entre mundos”. Durante muito tempo, essa mistura me confundia. Eu me perguntava: “Afinal, quem sou eu no meio disso tudo?”


Mas, nesse trabalho voluntário, eu entendi: sou todas essas partes ao mesmo tempo. E é isso que me torna única.


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Carrego comigo a lógica dos engenheiros da minha família, o pensamento crítico que aprendi em casa, a sensibilidade americana, a energia brasileira, a sabedoria oriental e o rigor alemão. Eu não sou uma metade de cada coisa — sou uma ponte inteira entre elas.


O que levo comigo

Essa experiência me ensinou que tecnologia e inteligência artificial podem ser incríveis, mas nunca vão substituir o toque humano. Porque traduzir palavras é fácil. Difícil mesmo é traduzir sentimentos. E isso só acontece quando há empatia.


Hoje, sei que meu papel no mundo vai muito além de converter frases. Quero continuar sendo essa ponte — entre línguas, entre culturas, entre pessoas. Quero seguir ouvindo com o coração, traduzindo com presença, e conectando realidades que, à primeira vista, parecem distantes — mas que, no fundo, compartilham o mesmo desejo:

ser compreendidas, acolhidas, lembradas.


Talvez não exista tradução perfeita para “saudade”. Mas existe algo ainda mais poderoso:

a capacidade de sentir junto.


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